Só escrevendo III
Ele ficou vermelho.
Ela ficou sem graça.
Então ele levantou e foi até a janela, ficou com o olhar perdido lá em baixo, o branco das casas. Aquilo costumava deixar ele até feliz. O bairro podia estar em decadência, mas enquanto os muros estivessem brancos todos achariam que está tudo bem. Então ele olhou pro lado e Clarice estava lá com o salgadinho na mão, encarando ele.
-Então... o que você faz?
-Penso... -disse ele voltando o olhar pro branco de lá de fora.
-Hum...- por que ele estava cortando o assunto, será que eu ofendi ele?, pensou Clarice- Hum... humrum. Legal... e agente vai ficar aqui pensando e olhando pela janela?
Aquilo tirou ele do transe e ele perguntou de um modo desinteressado:
-E você, faz o que?
Ela mastigando os salgadinhos fez uma cara de quem tenta lembrar uma coisa que aconteceu a muito tempo, como quando agente tenta lembrar da cor da nossa primeira bicicleta.
-Não sei... acho que não faço nada.
-Nada?
-É. Acho que sim... eu só... fico andando.
-Hum... uma viagem?
-Quase. Na verdade sim, mas não. Eu só não quero mais ficar parada. Há alguns dias tudo que eu conhecia desmoronou, e eu tive uma chance pra recomeçar minha vida... Só que ainda não quero fazer isso.
Será que seria só aquilo? Será que era a hora dela falar que ia sair?, era o que Clarice se perguntava. Já Carlos não se perguntava nada. Ele se sentia estranho, como se alguém tivesse enchido ele de gás hélio, e ele agora estivesse vendo toda a cidade de lá de cima, com medo de uma brisa muito forte e com medo de que se abrisse a boca o hélio escaparia e ele cairia. E quebrando o silêncio dos pensamentos Clarice disse:
-Quer fazer alguma coisa?
-Ahn? Que coisa?
-Ah, isso tanto faz... só fazer alguma coisa, sei lá, algum jogo, ir pra algum lugar...
-Por que, você quer jogar o que?
-Que tal verdade ou desafio?
-Que?... -É, ela era do tipo de pessoa ímpar que sempre diz o que agente menos espera em horas mais inusitadas.- Faz tempo que eu não brinco disso... tipo, uns 10 anos. -disse ele com sarcasmo.
-Tudo bem o que você não lembrar me pergunta que eu refresco sua memória.
De uma duas; ou ela é do tipo de pessoa que nunca percebe o sarcasmo, e faz quem falou parecer idiota, ou ela é do tipo de pessoa que ignora as pessoas quando são sarcásticas só pra elas se sentirem idiotas, pensou Carlos. E ele resolveu que seria bom se ele explicasse pra ela que ele tinha sido sarcástico e que não ia jogar 'verdade ou desafio', mas era tarde e ela já tinha pegado uma garrafa de vinho vazia em um dos cantos, e se sentado. Foi como se ela não ligasse pro que o Carlos queria, como se as vontades dele fossem totalmente irrelevantes. E ele sentindo-se impotente sentou, como um garotinho. "Esse lado pergunta e esse responde." disse ela como quem conta um grande segredo pra um peixe retardado, exagerando na gesticulação.
Então num gesto com graça colocou a garrafa no chão e girou. E a garrafa parou. E ela encarou ele:
-Verdade ou desafio?
-Ah, tanto faz...
Ela lançou um olhar que foi mais cruel que mastigar o peixe de estimação de alguém vivo, na frente do proprio dono.
-Er... digo, verdade.
-Qual seu nome? - as pessoas nessa hora costumam fazer mistério, parar, pensar, falar que estão indecisas e todo um teatro. Ela simplesmente não precisava daquilo.
-Ah, eu esqueci de me apresentar, pode me chamar de Carlos. - É, aquilo soou bem artificial. Na cabeça dele tinha soado como naqueles filmes que o cara é bem articulado e sempre sabe o que falar.
-Carlos... Hah!
-Que tem de errado em Carlos?
-Não, nada, nadinha mesmo. Gira.
E ele girou. E aqueles segundos que a garrafa girava duraram uma eternidade, todos acompanhando a tampa branca, e trocando olhares de vez enquando. Então ela parou de lado.
-O sofá pergunta a janela responde. -Disse ela. E se o Carlos tivesse dito aquilo ele pareceria ridículo, talvez muita gente parecesse ridícula com aquela fala, mas com ela, aquelas falas eram o tipo de coisa que você passa uma vida toda pra poder escutar. Ele riu. Ou melhor dizendo, sorriu, e ela fez o mesmo. Ele pôs a mão na garrafa e girou. E agora ninguém olhava pra garrafa, os dois estavam se olhando, a garrafa girando, o som dos carros dois andares à baixo, e só agora ele havia reparado que o sol que vinha da janela fazia um quadrado perfeito aonde eles estavam sentados.
-Sua vez.
-Que?
-Pergunta "verdade ou desafio" pra mim.
Será que ela realmente achou que ele tinha esquecido as regras? Não faz diferença, pensou ele.
-Verdade ou desafio?
"Verdade" disse ela como se a pronuncia dessas palavras lhe causassem dor.
-Ok... Deixa eu ver... - e ele estudou ela da cabeça aos pés. Nada à perguntar. Era como se ele já conhecesse ela à anos, e mesmo o maior segredo dela fosse uma coisa da rotina.
~[Cansei de escrever. Deixa o mistéro pro proximo se eu realmente decidir escrever um próximo...]